segunda-feira, 7 de março de 2011

+ do livro marley & eu:(ñ tdo)
Nossos amigos que tinham crianças pequenas e vinham nos
visitar, comentavam:
— A casa de vocês já é à prova de bebês!
Marley não sacudia seu rabo. Ele sacudia o seu corpo todo,
começando pelos ombros indo até o fim do outro lado. Ele era a versão
canina de Slinky. Poderíamos jurar que não havia ossos dentro dele,
apenas um único longo músculo elástico. Jenny começou a chamá-lo de
Sr. Terremoto.
E em nenhum outro momento ele se sacudia mais do que quando
tinha alguma coisa em sua boca. Sua reação em qualquer situação era a
mesma: agarrar o sapato, travesseiro ou lápis mais próximo — realmente
qualquer coisa servia — e sair correndo com ela. Uma voz em sua
cabeça deveria lhe sussurrar: “Vá em frente! Pegue isto! Babe bastante
em cima dele! Agora, saia correndo!”.
Alguns dos objetos que ele agarrava eram pequenos o suficiente
para serem escondidos, e isso o agradava muito — ele acreditava que
ninguém perceberia. Mas Marley nunca iria ser um bom jogador de
pôquer. Quando queria ocultar alguma coisa, não conseguia disfarçar
seu contentamento. Ele era sempre muito ativo, mas havia momentos
em que ele explodia num surto hiperativo, como se um espírito
brincalhão tivesse puxado o seu rabo. Seu corpo se contorcia, sua
cabeça balançava de um lado para outro, seu traseiro se movia numa
dança extática. Nós chamávamos isso de “Marley Mambo”.
— Muito bem, o que foi que você pegou desta vez? — eu dizia e,
ao me aproximar, ele começava a bater em retirada, correndo em
desenfreada carreira pela sala, sacudindo os quadris, a cabeça subindo e
descendo como um brinquedo de parque de diversões, tão exultante com
seu prêmio proibido que ele mal conseguia se conter. Quando
finalmente eu conseguia cercá-lo e o forçava a abrir a boca, eu nunca
deixava de encontrar alguma coisa. Sempre havia algo que ele pegara no
lixo ou do chão ou, à medida que ele crescia e ficava mais alto, de cima
da mesa de jantar. Guardanapos, lenços de papel usados, recibos de
supermercado, rolhas, clipes de papel, peças de xadrez, tampas de
garrafa — parecia uma arca inesgotável. Certo dia, abri suas mandíbulas
e encontrei meu contracheque grudado no céu da boca...
Dentro de algumas semanas, mal conseguíamos nos lembrar como era
a vida antes de nosso novo morador chegar. Rapidamente, entramos numa
rotina. Eu começava todas as manhãs, antes de tomar minha primeira
xícara de café, levando-o para passear na praia e voltava. Depois do café
da manhã, antes de tomar uma ducha, eu revirava o quintal com uma pá,
enterrando suas “minas” terrestres na areia no fundo do terreno. Jenny
saía para o trabalho antes das nove horas, e eu raramente saía de casa
antes das dez, primeiro fechando Marley na garagem com uma vasilha de
água fresca, uma pilha de brinquedos, e minha sorridente recomendação
para ele “ser um bom menino”. Ao meio-dia e meia, Jenny voltava para
casa para almoçar, quando ela lhe servia o almoço e jogava uma bola para
ele no quintal até ele ficar ofegante. Nas primeiras semanas, ela também
voltava para casa rapidamente no meio da tarde para deixá-lo sair para fazer
suas necessidades. Na maior parte das vezes, depois do jantar,
caminhávamos com ele até a costa, onde passeávamos ao longo da
Intracoastal, enquanto os iates de Palm Beach vagavam sob o fulgor do pôrdo-
sol.
Passear é provavelmente o termo errado. Marley passeava como
uma locomotiva desenfreada. Ele se lançava à frente, puxando a coleira
com todas as forças, engasgando enquanto nos arrastava atrás dele. Nós
puxávamos a coleira de volta e ele nos puxava adiante. Nós puxávamos
para trás, ele puxava para a frente, tossindo como um fumante
inveterado devido à coleira apertando seu pescoço. Ele virava para a
esquerda e para a direita, avançando sobre toda caixa de correio ou
arbusto, farejando, arfando e mijando sem parar inteiramente, em geral,
mijando mais em si mesmo do que no lugar que escolhera. Ele andava
em círculos à nossa volta, enrascando a coleira em nossos tornozelos
antes de voltar à carga novamente, quase nos derrubando. Quando
alguém se aproximava com outro cachorro, Marley pulava em cima deles
todo alegre, abaixando as patas traseiras ao chegar à extensão máxima de
sua coleira, morrendo de vontade de fazer novas amizades.
— Ele parece realmente amar a vida — comentou um dos donos
de cachorro que encontramos pelo caminho, e isso disse tudo...
Nosso filhote sofria de um caso de desordem hiperativa com déficit de
atenção.
Mesmo assim, apesar de todos os seus ataques infantis, Marley
desempenhava um papel importante em nosso lar e em nosso
relacionamento. Com sua truculência, ele mostrava a Jenny que ela
tinha um lado maternal. Ela havia cuidado dele por várias semanas, e
ainda não o havia esganado. Muito pelo contrário, ele estava
florescendo. Nós brincávamos que talvez devêssemos começar a
alimentá-lo menos para estancar seu crescimento e reduzir o seu grau
de energia.
A transformação de Jenny de uma fria assassina de plantas à
devotada mãe de cachorro continuava a me abismar. Acho que ela também
se abismava um pouco com isso. Ela fazia isso naturalmente. Um dia,
Marley começou a ter violentas ânsias de vômito. Antes que eu percebesse
que havia realmente um problema, Jenny estava junto dele. Ela o pegou,
abriu sua boca com uma das mãos e, com a outra, puxou do fundo da
garganta um pedaço de celofane encharcado de saliva. Tudo num dia.
Marley tossiu mais uma vez, bateu o rabo contra a parede, e olhou para ela
como se dissesse: “Vamos fazer isso de novo?”.
A medida que nos familiarizávamos com o novo membro de nossa
família, sentimo-nos mais a vontade para falar sobre aumentá-la de outros
modos. Algumas semanas depois de trazer Marley para casa, decidimos
parar de usar métodos anticoncepcionais. Não quer dizer que decidimos que
Jenny iria engravidar, o que seria corajoso demais para pessoas que haviam
dedicado suas vidas à mais completa indecisão sobre esse tipo de coisa. Ou
melhor, resolvemos reconsiderar o assunto, apenas decidindo parar de não
querer que ela engravidasse. Era uma lógica confusa, nós admitimos, mas,
de alguma forma, fez com que nos sentíssemos melhor. Sem pressão.
Nenhuminha. Não estávamos tentando ter um filho; estávamos apenas
deixando isso acontecer naturalmente. Deixando que a natureza se
encarregasse. Que será, será e todo esse tipo de coisa.
Sinceramente, morríamos de medo disso. Tínhamos diversos
amigos que tentaram por vários meses, até mesmo anos, sem
sucesso e que lentamente tornaram público o seu desespero
pessoal. Nos jantares, conversavam obsessivamente sobre consultas
médicas, contagens de espermatozóides e ciclos menstruais
controlados, gerando um mal-estar para todos à mesa. Ou seja, o que
se diz numa hora dessas? “Acho que a contagem dos seus
espermatozóides está ótima!” A conversa se tornava insuportável.
Sentíamo-nos apavorados em acabar como eles.
Jenny havia sorrido vários ataques de endometriose antes de nos
casarmos e havia se submetido a uma laparoscopia para remover o
excesso de tecido endométrico de suas trompas de falópio, o que pode
provocar infertilidade. E ainda mais perturbador era um pequeno segredo
nosso. Cegos de paixão, no início do nosso namoro, quando o desejo
solapava todo bom senso que tivéssemos, pusemos todas as precauções de
lado amontoadas com nossas roupas e fizemos amor sem nos preocupar,
sem usar qualquer método contraceptivo. Não apenas uma, mas várias
vezes. Foi muito cretino de nossa parte e, pensando bem, hoje,
deveríamos beijar o chão em agradecimento por termos escapado
milagrosamente de uma gravidez indesejada. Em vez disso, poderíamos
pensar: “O que há de errado conosco? Nenhum casal normal poderia ter
transado daquela forma sem proteção alguma e escapado ileso”.
Estávamos convencidos de que conceber uma criança não iria ser fácil.
Ao contrário dos nossos amigos que anunciavam seus planos para
tentar engravidar, permanecemos em silêncio. Jenny iria simplesmente
deixar sua receita de pílulas anticoncepcionais dentro do armário de
remédios e esquecê-la ali. Se engravidasse, ótimo. Se não engravidasse,
bem, não estávamos na realidade tentando fazer nada disso agora, não
é?...Algumas semanas depois, estávamos deitados na cama lendo,
quando Jenny fechou seu livro e disse:
— Vai ver que não é nada.
— O que não é nada? — perguntei, absorto, sem desviar meus
olhos do meu livro.
— Minha menstruação está atrasada.
Com isto, ela conseguiu chamar toda a minha atenção:
— Sua menstruação? Está...?
Eu me virei para encará-la.
— Isso acontece algumas vezes. Mas já faz mais de uma semana.
E estou me sentindo esquisita também.
— Esquisita, como?
— Como se eu estivesse constipada ou algo do gênero. Eu bebi um
gole de vinho no jantar outro dia e eu achei que fosse pôr tudo para
fora.
— Você nunca fez isso.
— Só de pensar em bebida alcoólica fico enjoada.
Eu nem ousei dizer isso a ela, mas ela andava um bocado mal
humorada ultimamente.
— Você acha que...? — comecei a perguntar.
— Eu não sei. O que você acha?
— Como é que eu vou saber?
— Eu não disse nada — respondeu Jenny. — Vai saber... sabe
como é? Para não dar azar.
Neste momento, eu entendi quão importante isso era para ela — e
para mim também. De alguma forma, a paternidade havia tomado conta
de nós: estávamos prontos para ter nosso bebê. Ficamos deitados ali, um
ao lado do outro, por um longo tempo, sem dizer nada, olhando para o
teto.
— Não vamos conseguir dormir assim — eu disse, finalmente.
— Esse suspense está me matando — ela admitiu.
— Venha, vista-se — eu disse. — Vamos a uma farmácia comprar
um teste de gravidez.
Vestimos shorts e camiseta e saímos pela porta da frente, Marley
correndo na nossa frente, felicíssimo com a perspectiva de um passeio
de carro tarde da noite. Ele se erguia nas patas traseiras no banco
traseiro do nosso pequeno Toyota Tercel, saltando para cima e para
baixo, sacudindo, babando, arfando, tomado de ansiedade, esperando o
momento em que eu abrisse a porta traseira do carro.
— Veja só, até parece que ele é o pai — brinquei.
Quando abri a porta, ele saltou no banco de trás com tanta
vontade que voou até bater a cabeça na janela do outro lado,
aparentemente sem se machucar.
A farmácia ficava aberta até a meia-noite, e eu esperei dentro do
carro com Marley, enquanto Jenny foi correndo comprar o teste. Há
certas coisas que homens não devem comprar numa loja e um teste de
gravidez em farmácia é uma delas. Marley andava de um lado para o
outro no banco de trás, choramingando, os olhos grudados na porta de
entrada da farmácia. Como era de sua natureza toda vez que ficava
ansioso, o que acontecia quase o tempo todo, ele arfava e salivava
muito.
— Pelo amor de Deus, sossegue! — eu disse a ele. — O que você
acha que ela vai fazer? Fugir pela porta dos fundos?
Ele respondeu sacudindo-se inteiro, atirando baba de cachorro e
pêlos soltos em cima de mim. Como estávamos habituados com o
comportamento de Marley dentro do carro, tínhamos sempre uma
toalha de banho de emergência no banco da frente, e eu a usei para me
secar e limpar o interior do carro.
— Sossegue! — eu exclamei. — Tenho certeza de que ela vai
voltar.
Cinco minutos depois, Jenny retornava com uma pequena sacola
na mão. Ao sair do estacionamento, Marley encaixou os ombros entre
os assentos dos bancos dianteiros, balançando suas patas dianteiras
sobre o console central, com o nariz tocando o espelho retrovisor. Cada
curva o derrubava, de barriga, sobre o freio de mão. E a cada tombo,
imperturbado e mais feliz do que nunca, ele tornava a se postar no
mesmo lugar.
Alguns minutos mais tarde, estávamos de novo em casa, no
banheiro, com o teste de gravidez, que custou US$ 8.99, aberto ao lado
da pia. Eu li as instruções em voz alta:
— Muito bem — eu disse —, aqui diz que ele tem um acerto em
99% dos casos. A primeira coisa que você vai ter de fazer é pipi no
copinho.
O passo seguinte era mergulhar a fita plástica do teste na urina e
depois em um pequeno tubo com uma solução que vinha junto com o
teste.
— Espere cinco minutos — eu disse. — Depois colocamos na
segunda solução por quinze minutos. Se ficar azul, você está
oficialmente grávida, querida!
Marcamos os primeiros cinco minutos. Depois Jenny colocou a
fita no segundo tubo e disse:
— Eu não agüento ficar aqui esperando.
Fomos para a sala e começamos a conversar sobre qualquer coisa,
fazendo de conta que estávamos esperando a água da chaleira ferver.
— Você viu o jogo dos Dolphins? — eu arrisquei, mas meu
coração se acelerara, e eu sentia um frio no estômago.
Se o resultado do teste fosse positivo, puxa vida, nossas vidas
iriam mudar para sempre. Se fosse negativo, Jenny iria ficar
decepcionada. Eu estava começando a perceber que eu ficaria também.
Depois do que pareceu uma eternidade, o temporizador tocou.
— Aí vamos nós — eu disse. — Não importa qual seja o
resultado, saiba que eu amo você.
Fui até o banheiro e pesquei a fita do teste do tubo. Sem dúvida,
estava azul. Azul como o fundo do mar. Um azul-marinho escuro, denso,
brilhante. Um tom de azul que não poderia ser confundido com nenhuma
outra cor.
— Parabéns, querida! — eu disse.
— Oh, meu Deus! — foi tudo que ela conseguiu dizer, e se jogou
em meus braços.
Abraçados ali, de olhos fechados, junto à pia do banheiro, aos
poucos me dei conta de algo se mexendo em torno dos nossos pés.
Olhei para baixo e lá estava Marley, sacudindo-se, balançando a
cabeça, abanando o rabo, batendo contra a porta do closet com tanta
força que poderia parti-la. Quando me abaixei para acariciá-lo, ele
escapuliu. Oh-oh. Era o Marley Mambo e isso significava apenas uma
coisa.
— O que você tem aí desta vez? — perguntei, e comecei a
persegui-lo.
Ele correu para a sala de visitas, escapulindo por pouco. Quando
finalmente consegui segurá-lo e abri sua bocarra, de cara, não vi nada.
Depois, no fundo de sua língua, quase descendo pela garganta, vi
alguma coisa. Era algo longo, fino e achatado. E era azul como o fundo
do mar. Pincei sua garganta e puxei a fita de teste de gravidez positiva
para fora.
— Desculpe desapontá-lo, camarada — eu disse —, mas isto eu
vou guardar em meu livro de recordações...
A gravidez fez muito bem à Jenny. Ela se levantava pela manhã
para se exercitar e caminhar com Marley. Ela preparava refeições
nutritivas e saudáveis, cheias de legumes e frutas frescas. Ela eliminou a
cafeína e refrigerantes dietéticos e, claro, qualquer bebida alcoólica, não
me permitindo nem mesmo colocar uma colher de sopa de xerez para
temperar a comida.
Ela jurou manter segredo sobre a gravidez até que estivéssemos
certeza de que o feto estivesse firme sem risco de aborto espontâneo,
mas nem ela nem eu conseguimos disfarçar. Estávamos tão
entusiasmados que confidenciamos a novidade a todos de nossos
parentes e amigos, pedindo segredo, até que não fosse mais segredo.
Primeiro contamos aos nossos pais, depois aos nossos irmãos, então aos
amigos mais íntimos, em seguida aos nossos colegas de trabalho e
vizinhos. Com dez semanas, a barriga de Jenny começou a arredondarse
de leve. A gravidez parecia mais palpável. Por que não dividir nossa
alegria com o resto do mundo? Quando chegou o dia do exame e de
ultra-som de Jenny, era como se tivéssemos colocado um anúncio num
outdoor: John e Jenny estão esperando um bebê.
No dia do exame médico, não fui trabalhar pela manhã e, como foi
pedido, trouxe uma fita de vídeo virgem para podermos registrar as
primeiras imagens granuladas do nosso filho. A consulta seria uma
sessão de check-up e de instruções. Iríamos conversar com uma
obstetra que responderia a todas as nossas perguntas, medir a barriga
de Jenny, ouvir os batimentos cardíacos do bebê e, claro, mostrar-nos
suas feições dentro do seu útero.
Chegamos às nove da manhã, ansiosos. A obstetra, uma senhora
gentil de meia-idade, com sotaque britânico, conduziu-nos a um
pequeno consultório de exames e perguntou na mesma hora:
— Gostariam de ouvir os batimentos do coração do bebê?
Claro que sim, nós respondemos. Ouvimos atentamente enquanto
ela passava um tipo de microfone adaptado a um pequeno alto-falante
sobre a barriga de Jenny. Ficamos em silêncio, o sorriso congelado em
nosso rosto, auscultando para ouvir batidas abafadas, mas só havia
estática.
A obstetra disse que isso era comum.
— Depende da posição do bebê dentro do útero. Às vezes, não se
consegue ouvir nada. Pode ser que ainda seja cedo.
Ela sugeriu passarmos para o ultra-som.
— Vamos dar uma olhada no seu bebê — ela disse num tom
faceiro.
— Nossa primeira visão do bebê Grogie — disse Jenny, sorrindo
para mim.
A obstetra nos levou até a sala de ultra-som e deitou Jenny
sobre a mesa de exame com uma tela de monitor ao lado dela.
— Eu trouxe a fita — eu disse, agitando-a na frente dela.
— Segure-a por enquanto — respondeu a obstetra, puxando a
blusa de Jenny e começando a passar um instrumento sobre a barriga
dela que tinha a mesma dimensão e formato que um taco de hóquei.
Olhamos para o monitor do computador e vimos uma massa cinza
indefinida.
— Humm, não dá para ver nada — disse ela, sem alterar o tom de
voz.
— Vamos tentar um ultra-som transvaginal. Dá para pegar muito
mais detalhes desse modo.
Ela saiu da sala e voltou alguns momentos depois com outra
enfermeira, uma loura alta com um monograma nas unhas dos dedos das
mãos. Chamava-se Essie, e pediu a Jenny que tirasse a calcinha, e depois
inseriu um sensor coberto de látex em sua vagina. A obstetra estava
certa: a resolução era muito superior à do ultra-som. Ela aproximou a
imagem sobre um aparente invólucro diminuto no meio de um mar
cinzento e, com um clique do mouse, aumentou-o duas vezes e depois
uma terceira vez. Mas apesar de toda resolução, o invólucro parecia
apenas vazio e informe para nós. Onde estavam os bracinhos e
perninhas que os livros de gravidez diziam que estariam formados em
torno de dez semanas? Onde estava a cabecinha? Onde estavam os
batimentos cardíacos? Jenny, com o pescoço esticado olhando para a
tela, ansiosa, perguntou às enfermeiras com um riso um pouco nervoso:
— Há algo aí?
Eu ergui os olhos para ver a expressão de Essie e eu percebi que
não queríamos ouvir a resposta. De repente, entendi por que ela não
respondia enquanto continuava aumentando a imagem. Ela disse a
Jenny num tom de voz controlado:
— Não o que se esperaria ver com dez semanas.
Coloquei minha mão sobre o joelho de Jenny. Continuamos
olhando fixamente para a tela, como se pudéssemos dar-lhe vida.
— Jenny, acho que temos um problema aqui — Essie disse. —
Deixe-me chamar o Dr. Sherman.
Enquanto esperávamos em silêncio, descobri o que as pessoas
querem dizer quando tentam descrever o enxame de gafanhotos que se
abate sobre alguém um pouco antes de desmaiar. Senti o sangue fugir de
minha cabeça e meus ouvidos zuniram. Se eu não me sentar, pensei, vou
cair no chão. Que vergonha seria isso. Minha mulher, tão corajosa,
suportando a notícia estoicamente, enquanto seu marido caía,
inconsciente, as enfermeiras tentando reavivá-lo com sais aromáticos.
Continuei meio sentado na beira da mesa de exames, segurando a mão de
Jenny e passava os dedos em seu pescoço com a outra mão. Seus olhos se
encheram de lágrimas, mas ela segurou o choro.
Dr. Sherman, um homem alto e bem apessoado com expressão
séria, mas afável, confirmou que o feto estava morto.
— Teria sido possível captar os batimentos cardíacos, sem
dúvida — ele disse.
Ele nos disse, com candura, o que já havíamos lido nos livros. Que
uma em cada seis gravidezes resulta em aborto. Que esta era a forma da
natureza dispensar os bebês que fossem mais fracos, mentalmente
comprometidos ou deformados. Aparentemente lembrando-se da
preocupação de Jenny quanto aos exterminadores de pulgas, ele nos
disse que não havia nada que pudéssemos ter feito ou não ter feito. Ele
tocou o rosto de Jenny e aproximou-se dela como se fosse beijá-la:
— Eu sinto muito — ele disse. — Vocês podem tentar
novamente dentro de alguns meses.
Ficamos em silêncio. A fita virgem de vídeo sobre o banco ao
nosso lado de repente pareceu-nos constrangedora, lembrando-nos,
de forma dolorosa do nosso otimismo cego e ingênuo. Eu quis jogá-la
na parede. Quis escondê-la.
Perguntei ao médico:
— O que fazemos agora?
— Temos de remover a placenta — ele disse. — Há alguns anos,
vocês ainda não teriam sabido do aborto até a hemorragia começar.
Ele nos deu a opção de esperar o fim de semana e voltar na
segunda-feira para fazer o procedimento, que seria o mesmo que um
aborto provocado, o feto e a placenta sendo sugados do útero, mas
Jenny queria que isto acabasse logo, e eu também.
— Quanto mais cedo melhor — ela disse...— Você deveria se comportar como um labrador — eu gritei. —
Não como um labrador fugitivo.
Mas o que eu tinha, e meu cão não, era um cérebro evoluído que
excedia pelo menos um pouco a força muscular. Agarrei uma segunda
vareta e comecei a brincar com ela. Segurei-a acima da minha cabeça e
comecei a jogá-la da mão direita para a esquerda. Arremessei-a de um
lado para o outro. Notei que Marley mudou de atitude. De repente, a
vareta em sua boca, que havia apenas alguns minutos era o objeto mais
desejado que ele poderia imaginar sobre a face da Terra, perdeu todo o
interesse. A minha vareta arrebatou toda a sua atenção. Ele se
aproximou devagarzinho, até ficar a poucos centímetros de mim.
— Nasce um bobo todo dia, não é, Marley? — eu ri, passando a
vareta em frente ao focinho dele e observando-o, enquanto ele ficava
vesgo tentando segui-la.
Eu podia ver os miolos funcionando em sua cabeça enquanto ele
pensava como iria pegar a nova vareta sem soltar a primeira. Seu lábio
superior tremia quando ele arriscava agarrar a segunda sem deixar cair a
outra. Logo coloquei minha mão livre firme na ponta da vareta em sua
boca. Eu puxava de um lado e ele puxava de outro, rosnando. Pressionei
a segunda vareta contra seu focinho.
— Você sabe que quer esta outra — sussurrei.
E como! A tentação era forte demais para ele agüentar. Eu podia
sentir sua boca afrouxando em volta da primeira vareta. E então ele se
moveu. Abriu as mandíbulas para tentar pegar a segunda vareta sem
largar a primeira. Num segundo, puxei as duas acima da minha cabeça.
Ele saltou no ar, latindo e girando, obviamente sem entender como uma
estratégia tão ardilosa da parte dele poderia ter ido água abaixo.
— E por isso que eu sou o dono e você é o cachorro — respondi.
E ao dizer isso, ele jogou mais água e areia sobre o meu rosto.
Arremessei uma das varetas na água e ele correu atrás dela,
latindo loucamente enquanto corria. Ele retornou como um oponente
novo, refrescado. Desta vez ele estava sendo mais cauteloso e se recusou
a se aproximar de mim. Ele permaneceu a cerca de dez metros de
distância, com a vareta em sua boca, olhando para seu novo objeto de
desejo, que era apenas o seu velho objeto de desejo, sua primeira
vareta, que estava agora no alto acima da minha cabeça. Eu podia ver
seus miolos funcionando novamente. Ele deveria estar pensando:
“Desta vez, vou só esperar aqui até que ele atire e então ele não terá
nenhuma vareta e eu terei as duas”.
— Você realmente pensa que eu sou burro, não é, cachorro? —
perguntei.
Inclinei-me para trás e com um gemido longo e exagerado,
atirei a vareta com todas as minhas forças. Óbvio que Marley zuniu
para dentro d’água com a sua vareta ainda presa entre os dentes. O
único detalhe era que eu não havia atirado nada. Você imagina que
Marley sacou isso? Ele nadou até longe até perceber que a vareta ainda
estava em minha mão.
— Você é um sádico! — Jenny gritou sentada no banco e eu olhei
para trás e vi que ela estava rindo.
Quando Marley finalmente voltou à praia, ele afundou na areia,
exausto, mas sem soltar a sua vareta. Ele lhe mostrei a minha,
lembrando-lhe o quanto era melhor que a dele, e ordenei:
— Solte!
Eu levantei o meu braço para trás como se fosse jogar, e o bobão
se levantava novamente num instante e se virava para se jogar para a
água novamente.
— Solte! — eu repetia assim que ele voltava.
Foram precisas umas três tentativas, mas finalmente ele fez o que
eu queria. E no instante em que sua vareta caiu na areia, lancei a minha
no ar para que ele pegasse. Repetimos isto diversas vezes e, cada vez, ele
parecia entender um pouco mais claramente o que eu estava fazendo.
Aos poucos, a lição começou a entrar naquela sua cabeça dura. Se ele
me devolvesse a. sua vareta, eu arremessaria uma nova para ele.
— É como uma troca de presentes de amigo oculto — eu disse. —
Você precisar dar para receber um.
Ele saltou e beijou-me com sua boca cheia de areia, que eu
interpretei como um reconhecimento de que havia aprendido a lição.
Quando Jenny e eu caminhávamos de volta para casa, Marley
estava tão cansado que, pela primeira vez, não puxou a correia de sua
coleira. Eu me senti orgulhoso com o que havíamos conseguido. Por
várias semanas, Jenny e eu estávamos tentando lhe ensinar alguns
modos e comportamentos sociais básicos, mas ele vinha aprendendo
muito devagar. Era como se vivêssemos com um garanhão selvagem —
tentando lhe ensinar a tomar chá numa xícara de porcelana fina. Eu
me lembrei de São Shaun e quão rapidamente eu, um mero garoto de
dez anos de idade, pude lhe ensinar tudo que ele precisava saber para
ser um grande cão. Eu me perguntava o que eu estava fazendo de errado
desta vez.
Mas nosso exercício de pega-varetas deu-nos uma ponta de
esperança: — Sabe — eu disse a Jenny —, realmente acho que ele está
começando a entender.
Ela olhou para ele, saltitando ao nosso lado. Ele estava
encharcado e coberto de areia, espumando pela boca, segurando ainda a
vareta conquistada a duras penas entre os dentes.
— Eu não teria tanta certeza disso — ela replicou...
— Este cachorro tem um parafuso solto.
Definitivamente, nós precisávamos de ajuda profissional.
Nosso veterinário recomendou-nos um clube de treinamento de
cães na cidade que oferecia aulas de adestramento básicas às terças-feiras
à noite, no estacionamento por trás da loja de armamentos. Os
professores eram voluntários do clube, dedicados amadores que muito
provavelmente já haviam aprimorado ao máximo o comportamento de
seus próprios cães. O curso era de oito aulas e custava cinqüenta dólares,
que achamos ser de graça, especial-mente considerando que Marley
destruía um sapato de cinqüenta dólares em trinta segundos. E o clube
também garantia que, após a graduação, estaríamos levando uma perfeita
Lassie de volta para casa. Na matrícula, conhecemos; mulher que iria
ministrar as aulas a Marley. Era uma treinadora severa, que não admitia
bobagens, e que defendia a teoria de que não há cães incorrigíveis, apenas
donos sem sorte ou força de vontade suficiente.
A primeira aula pareceu provar o seu ponto de vista. Antes de
sairmos do carro, Marley viu os outros cães reunidos com seus donos do
outro lado da pista de automóveis. Uma festa! Ele saltou para fora do carro
a jato por cima de nós, arrastando a guia atrás dele. Ele foi de cão em cão,
cheirando-os, soltando pipi, babando para todos os lados. Para Marley, era
um festival de cheiros — tantos cachorros para cheirar num espaço tão
curto de tempo — e ele estava curtindo aquele momento, tomando
cuidado para se manter à minha frente enquanto eu corria atrás dele.
Toda vez que eu estava a ponto de pegá-lo, ele se adiantava mais alguns
metros. Finalmente, eu o cerquei e dei um salto à frente, aterrissando
com os dois pés sobre a guia dele. Isso fez com que ele parasse tão de
repente que, por um momento, pensei que tivesse quebrado o seu pescoço.
Ele caiu de costas, virou-se de lado e olhou para cima para mim com uma
expressão serena de quem tinha conseguido fazer o que queria.
Enquanto isso, a instrutora nos encarava com ar de desaprovação
como se eu tivesse resolvido dançar pelado na frente de todo mundo.
— Tome seu lugar, por favor — ela disse, seca.
Quando viu Jenny e eu puxando Marley até a sua posição, ela
acrescentou:
— Vocês vão ter de decidir qual de vocês dois irá treiná-lo.
Comecei a explicar que ambos queriam participar para que
cada um pudesse trabalhar com ele em casa, mas ela me cortou,
dizendo:
— Um cão — ela disse, de forma contundente — só pode
obedecer a um mestre.
Dei início a um protesto, mas ela me calou com o olhar —
suponho que o mesmo que usava para intimidar seus cães —, e passei
para o lado com o rabo entre as pernas, deixando Mestre Jenny no
comando.
Provavelmente, isso foi um erro. Marley já era bem mais forte do
que Jenny e ele sabia disso. A Sra. Dominatrix havia acabado de
iniciar sua introdução sobre a importância de estabelecer o domínio
sobre nossos animais de estimação, quando Marley decidiu que uma
poodle do outro lado da quadra merecia ser olhada mais de perto. Ele
arrancou arrastando Jenny atrás dele.
Todos os outros cachorros estavam sentados placidamente ao
lado de seus donos com a distância de três metros entre eles,
aguardando as instruções. Jenny estava lutando valentemente para
fincar os pés no chão e fazer Marley parar, mas ele seguiu em frente,
arrastando-a para o outro lado do estacionamento atrás do traseiro
daquela poodle. Minha mulher parecia uma esquiadora aquática
puxada por uma lancha de 24 pés. Todo mundo arregalou os olhos.
Alguns se afastaram, dando passagem. Eu cobri os meus.
Marley dispensava apresentações formais. Ele aterrissou na
poodle e imediatamente enfiou o nariz entre suas patas traseiras.
Imaginei que seria a forma masculina canina de perguntar:
— Você vem sempre aqui?
Depois que Marley examinou inteiramente a poodle, Jenny pôde
puxá-lo de volta para o seu lugar.
A Sra. Dominatrix anunciou, calmamente:
— Isto, turma, é um exemplo de cachorro a quem foi permitido
imaginar que ele era o macho mais importante de sua ninhada. Neste
momento, é ele quem comanda.
Como se quisesse provar o ponto da instrutora, Marley começou a
perseguir o seu próprio rabo, girando como um doido, as mandíbulas
estalando no ar, enrolando a guia em volta das pernas de Jenny até
imobilizá-la completamente. Tive pena dela, mas agradeci não estar em
seu lugar.
A instrutora continuou a aula, passando a ensinar os comandos
para sentar e deitar. Jenny ordenava:
— Sente!
E Marley pulava em cima dela e colocava as patas sobre seus
ombros. Ela empurrava seu traseiro para baixo e ele se virava para
receber um carinho na barriga. Ela tentava arrastá-lo de volta para o
lugar dele e ele agarrava a guia entre seus dentes, balançando sua
cabeça de um lado para outro como se estivesse duelando com uma
sucuri. Era horrível ficar olhando. Em determinado momento, abri os
olhos e vi Jenny deitada, de cara no asfalto e Marley por cima dela,
resfolegando alegremente. Mais tarde, ela me contou que estava
tentando mostrar a ele o comando para deitar.
No final da aula, quando Jenny e Marley vieram até onde eu
estava, a Sra. Dominatrix nos interceptou:
— Vocês realmente precisam controlar este animal — ela disse,
suspirando.
Bem, obrigado por este valioso conselho. E em pensar que
tínhamos nos matriculado apenas para contribuir com o lado cômico
da aula. Nenhum de nós disse nenhuma palavra. Apenas retornamos ao
carro nos sentindo humilhados, e dirigimos para casa em silêncio,
apenas com Marley arfando alto enquanto baixava a adrenalina da
experiência de sua primeira aula de adestramento.
Finalmente, eu disse:
— Uma coisa não se pode negar: ele adora escola.
Na semana seguinte, Marley e eu voltamos, desta vez sem Jenny.
Quando sugeri a ela que eu seria o elemento mais próximo de um cão
macho em casa, ela alegremente abriu mão de seu breve título de
mestre e comandante, e jurou que nunca mais iria dar as caras em
público novamente. Antes de sair de casa, virei Marley de costas no
chão e falei baixo no tom de voz mais sério possível:
— Sou eu quem manda! Não é você quem manda! Eu sou o
chefe! Entendeu, Cão-alfa?
Ele bateu o rabo no chão e tentou morder meus pulsos.
A aula daquela noite ensinava a andar junto, uma das minhas
especialidades. Eu estava cansado de lutar com Marley a cada passo.
Ele já havia derrubado Jenny uma vez, quando disparou atrás de um
gato, machucando seus joelhos. Já era hora de ele aprender a caminhar
tranqüila-mente ao nosso lado. Forcei-o até chegar ao nosso lugar na
pista, evitando que saltasse sobre cada um dos cachorros pelos quais ele
passava...Como instruído, fiz Marley se levantar e retirei o enforcador de
sua boca. Depois, de acordo com as instruções, pressionei seu traseiro
para que se sentasse e fiquei de pé ao lado dele, com minha perna
esquerda encostada no seu ombro direito. Depois de contar até três, eu
deveria dizer:
— Marley, junto!
E dar um passo com a perna esquerda — nunca a direita. Se ele se
afastasse, evidente, uma série de pequenas correções — alguns leves
puxões na guia — o trariam de volta à linha.
— Turma, quando eu contar três — exclamou a Sra. Dominatrix.
Marley se contorcia de emoção. O objeto estranho e brilhante em
torno do seu pescoço tinha tomado sua atenção.
— Um... Dois... Três!
— Marley, junto! — ordenei.
Assim que dei o primeiro passo, ele disparou como um jato de
carreira. Puxei a guia com força e ele tossiu alto assim que o enforcador
apertou sua garganta. Ele recuou por um momento, mas assim que a
corrente afrouxou, ele se esqueceu do momento de sufocação, anulando
a lição que fora ensinada. Ele avançou novamente. Puxei a guia de novo
e mais uma vez ele sufocou. Continuamos assim por toda a extensão do
estacionamento. Marley arremetendo à frente, eu puxando-o para trás,
cada vez com mais força. Ele tossia e arfava; eu gemia e suava.
— Controle seu cachorro! — a Sra. Dominatrix gritava.
Eu tentava, com todas as minhas forças, mas ele não estava
aprendendo a lição, e eu temi que Marley acabaria sendo estrangulado antes
de perceber o que deveria fazer. Enquanto isso, os outros cães caminhavam
ao lado de seus donos, atendendo a correções menores como a Sra.
Dominatrix disse que eles fariam.
— Pelo amor de Deus, Marley — eu sussurrei. — O orgulho de
nossa família está em jogo aqui!
A instrutora fez a turma formar mais uma fila e tentar outra vez.
Nova-mente, Marley atravessou a pista arremetendo como um maníaco,
olhos esbugalhados, estrangulando-se ao longo do caminho. Na outra
ponta, a Sra. Dominatrix apresentou-nos para a turma como um
exemplo de como não se deveria fazer um cão ficar junto.
— Aqui — ela disse, sem paciência, estendendo a mão. — Deixeme
mostrar a você.
Eu lhe passei a guia e ela, de modo ultra-eficaz, conduziu Marley à
posição correta, puxando o enforcador ao lhe dar a ordem para se sentar.
Ele se sentou nas patas traseiras, olhando para ela, ansioso. Maldito.
Com uma puxada rápida da guia, a Sra. Dominatrix saiu andando
com ele. Mas quase instantaneamente ele disparou à frente, como se
estivesse puxando o trenó de Papai Noel. A instrutora corrigiu-o com
firmeza, tirando seu equilíbrio. Ele tropeçou, engasgou, e lançou-se à
frente de novo. Parecia que iria arrancar o braço dela fora. Eu
deveria estar envergonhado, mas senti uma estranha sensação de
prazer que vem junto com a vingança. Ela não estava fazendo melhor
do que eu. Meus colegas tentavam segurar o riso, e eu me refestelava,
um pouco orgulhoso: Vêem? Meu cachorro é ruim com qualquer
pessoa, não somente comigo!
Agora que eu não era mais o único que tinha sido feito de bobo,
eu precisava admitir, a cena era um bocado hilária. Ao chegar ao fim
do estacionamento, eles viraram e retornaram claudicando em nossa
direção; a Sra. Dominatrix com a cara fechada de raiva, e Marley mais
feliz impossível. Ela puxou a guia com fúria e Marley, babando até não
poder mais, puxava de volta com ainda mais força, visivelmente
adorando esse novo e excelente cabo-de-guerra que a professora
resolveu jogar. Quando me viu, pisou fundo. Com um novo impulso de
adrenalina quase que sobrenatural, avançou em minha direção,
forçando-a a correr para não ser arrastada o resto do caminho. Marley só
parou ao se jogar em cima de mim com sua costumeira alegria
esfuziante. A Sra. Dominatrix me fulminou com o olhar como se eu
tivesse cruzado uma linha invisível sem retorno. Marley debochara de
tudo que ela ensinara sobre cachorros e disciplina: ele a havia
humilhado publicamente. Ela me devolveu a guia e virou-se para a
turma como se o pequeno e infeliz incidente não tivesse acontecido, e
disse:
— Muito bem, turma, quando eu contar três...
Quando a aula terminou, ela me perguntou se eu poderia ficar um
pouco mais. Esperei com Marley, enquanto ela respondia pacientemente
às perguntas dos outros alunos da turma. Depois que o ultimo saiu, ela
se virou para mim e, num tom de voz conciliatório totalmente inédito
para mim, disse:
— Acho que seu cachorro ainda está muito novo para ser
adestrado.
— Ele é um problema, não é? — repliquei, sentindo um pouco de
solidariedade da parte dela, já que havíamos passado pela mesma
experiência vexatória.
— Ele simplesmente ainda não está preparado para ter as aulas —
ela respondeu. — Ainda precisa crescer mais um pouco. Comecei a
perceber o que ela queria dizer com aquilo.
— Você está tentando me dizer...
— Ele distrai os outros cachorros.
— ...que você está...
— Ele é agitado demais.
— ...nos expulsando da turma?
— Você poderá trazê-lo de volta daqui a seis ou oito meses.
— Então, você está nos expulsando da turma?
— Eu lhe devolverei o valor integral da matrícula, sem problema.
— Você está nos expulsando.
— Sim — ela concordou, finalmente —, estou expulsando vocês
da turma...

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